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Carolina Maria de Jesus: o que as biografias não te contam.




    Na pequena cidade de Sacramento, estado de Minas Gerias, em 14 de março de 1914 nascia uma das maiores escritoras negras brasileiras: Carolina Maria de Jesus. Neta de escravos e filha de pais negros, sua família era composta por sete irmãos; a mãe era lavadeira e não obteve oportunidade de estudar, o pai era casado com outra mulher e mesmo assim gerou Carolina ilegitimamente, chegando a maltratá-la enquanto criança. A vida nunca foi fácil para a menina, que felizmente não estava disposta a desistir.

    Aos 7 anos Carolina teve sua chance, Maria Leite Monteiro de Barros, para quem a mãe trabalhava como lavadeira lhe ofereceu ajuda financeira para frequentar a escola. Assim ela ingressa no colégio Alan Kardec (uma instituição espírita), onde cursou o 1º e o 2º ano do primário (equivalente ao nosso ensino fundamental hoje em dia) e nesse período, embora curto, aprende a ler e a escrever, descobrindo um mundo que lhe fascinaria mais para a frente: o da literatura. Com o propósito de praticar o que aprendeu ela sempre pedia emprestado alguns livros para sua vizinha já que em sua casa não tinha, assim descobre a obra Escrava Isaura de Bernardo Guimarães que a encanta.

    Teve que deixar a escola em 1924 pois a família mudou-se para Lajeado (cerca de 194 km de Sacramento) para trabalhar como lavradores em uma fazenda. Com o passar dos anos vão migrando para outros lugares como Franca, no interior de São Paulo, onde Carolina trabalha como lavradora em uma fazenda e, na cidade, como empregada doméstica. Depois vão para Conquista (MG) atuando na mesma função até que em 1929 retornam para Sacramento.

    Nessas circunstâncias Carolina passou a sofrer muito com algumas feridas que surgiram em suas pernas, então, afim de procurar uma cura para o incômodo andou até Uberaba (MG), mas não obteve nenhuma melhora, então, em 1932, retorna a Sacramento.

    No ano seguinte duas situações infelizes acontecem: Como Carolina sabia ler e estava folheando um livro espírita, as autoridades determinaram que o que ela só podia estar fazendo era feitiçaria, pois não era possível que uma menina preta e pobre e possa saber tanto a não ser que fosse bruxa, e então encurralam a menina e a prendem na cidade. E não foi só isso, houve ainda uma segunda prisão, quando ela e sua mãe foram acusadas injustamente de roubar 100 mil-réis de um padre, então são torturadas para assumirem a culpa sobre o crime e após um tempo são absolvidas.

    Após todo o sofrimento, em 1936 a mãe dela decidiu que era hora de Carolina sair da cidade e não voltar mais, Sacramento significa confirmação de graça e segurança, mas naquele momento essa definição não cabia. Decidida a jovem de 33 anos parte para São Paulo, em 1937, após a morte da matriarca.

    Chegando na terra da garoa, começou a trabalhar como doméstica na casa do médico Dr. Euryclides de Jesus Zerbini, lá ela pedia sempre ao doutor para que tivesse acesso a biblioteca da casa, após a concessão passou a frequentá-la constantemente durante suas folgas. O maior sonho de Carolina era publicar um livro e assim ela procurava maneiras de realizá-lo; sempre visitava redações de jornais de São Paulo, se autoproclamava poetisa e oferecia-se para declamar seus poemas, a princípio ninguém ajudava, ninguém lhe dava ouvidos até que em 25 de fevereiro de 1940 um jornalista do Folha da Manhã (SP) chamado Willy Aureli a ouviu e publicou uma matéria intitulada: Carolina Maria, poetiza preta onde aparecia sua foto ao lado do registro de um poema nomeado de “O Colono e o fazendeiro”. Neste momento Carolina dá os primeiros passos na carreira que tanto almejava.

A primeira foto de Carolina Maria de Jesus.

“Diz o brasileiro

Que acabou a escravidão…

Mas o colono sua o ano inteiro

E nunca tem um tostão!

Se o colono está doente

É preciso trabalhar!

Luta o pobre, no sol quente

E nada tem para guardar…”


    Em 1948, engravida de um português que a abandonou e não sequer assumiu o filho. Por conta da gravidez foi dispensada da casa em que trabalhava, afinal, naquela época tão preconceituosa as famílias não davam emprego para mães solteiras. A mulher então passou a morar na rua.

    Na época quem governava o estado de São Paulo era Adhemar Barros, que procurava solucionar a questão da boa imagem da cidade, mandou recolher os moradores de rua e despejá-los em um lugar próximo ao rio Tietê, assim deu origem à favela do Canindé.

    Carolina foi uma das levadas para o local e lá construiu seu barracão, usando materiais que achava no lixo: madeira, lata, papelão, abrigando-se com o filho primogênito João José (1948-1977). Com o passar dos anos gerou mais duas crianças, José Carlos de Jesus (1950), após um relacionamento com um espanhol e Vera Eunice de Jesus Lima (1953) após relacionamento com um dono de fábrica e comerciante. Carolina sempre dizia que era feliz sem marido, e que nenhum homem entenderia sua necessidade literária.

    Sem nenhum recurso para sobreviver tornou-se catadora de papel, saía todas as noites pegando papéis espalhados pela cidade ou que eram descartados em fábricas como a Klabin, para alimentar as crianças, o que nem sempre acontecia, às vezes jantavam, mas não almoçavam ou tomavam café, o mal do século para eles era a fome. “E assim no dia 13 de maio (alusão ao dia da abolição da escravatura) eu lutava contra a escravatura atual — a fome”

    Ela recolheu muitos cadernos e nesses escrevia sua realidade diária, as dificuldades e os raros momentos de tranquilidade quando alguém lhe doava algum tostão que permitia com que ela tivesse a certeza que teria comida aquele dia.

    Em 1958, o jornalista Audálio Dantas, responsável por fazer uma matéria sobre o playground instalado na favela do Canindé, para o jornal Folha da Noite, encontrou Carolina ameaçando os vizinhos de que os denunciaria em seu livro, imediatamente Audálio quis saber do que se tratava esses livros, então Carolina o levou para conhecer seus escritos, nesse momento ele se encanta e decide ajudá-la a publicar suas anotações e assim surge o livro “Quarto de Despejo” lançado em 1960. Ele a salvou dessa vida de favela, foi graças a ele que Carolina conseguiu se tornar a maior escritora de todos os tempos. Audálio Dantas foi quem descobriu Carolina de Jesus...mas espera aí!

    Essa foi a história que você, querido leitor, comprou durante anos, afinal, fazendo uma analogia simples: foi Pedro Álvares de Cabral quem descobriu o Brasil não os índios, não é? Antes de entender como funcionam as dinâmicas sociais era o que eu pensava também, compramos a ideia de que o branco sempre descobre e salva o preto, mas calma que agora sim eu vou te contar a versão correta dessa história.

    Audálio Dantas não a descobriu, Carolina já existia, aliás ela deu a ele o privilégio de conhecê-la modéstia parte. Ela escrevia desde 1940, já havia feito texto para o Getúlio Vargas, já havia saído em jornais. O papel do jornalista foi mero reconhecimento do potencial de Carolina e ajuda financeira para que o livro fosse publicado, e o que tem de errado nisso você deve pensar? Nada a princípio. Mas infelizmente ele não reverteu corretamente o dinheiro das publicações de Carolina para a própria Carolina; informações confirmadas pela filha e professora Vera Lúcia.

    Em entrevista recente para o Catraca Livre a professora afirmou sinceramente que odiava Audálio Dantas, não um ódio violento, mas um ódio gerado pela injustiça.“Eu era rica e não sei onde foi meu dinheiro... O Audálio bem de vida e Carolina passando por diversas dificuldades” conta Vera.

    A professora diz ainda que que diferente do que Audálio diz de se surpreender com os escritos de Carolina, ele já sabia da existência de uma escritora naquela favela e pode ter ido propositalmente até lá só para constatar essa informação.

    Outra questão é que, Audálio não tirou a escritora e os filhos da favela antes de publicar o livro, nem depois. Quem tirou-as de lá foi uma acionista do açúcar união, Antônio Cabral que as levou para o porão de sua casa, e lá elas não tinham muito, só o que mais precisavam: comida.

    E se não bastasse tudo isso, a escritora foi vítima de preconceito escancarado, começaram a ligar a inteligência e o talento para a escrita de Carolina com Audálio, quando tudo o que continha no livro eram histórias próprias.
Audálio errou e assume que não devia tê-las deixado nessa situação.
História escurecida? Então beleza. Vamos adiante.

    Ela escreveu diversos livros, alguns publicados postumamente e outros ainda em vida, mas o queridinho sem dúvidas é “O quarto de despejo”.

    O livro é uma espécie de diário em que Carolina conta os seus dias na favela com detalhes riquíssimo, e tudo é extremamente cruel, triste e revoltante em vários momentos do livro me emociono muito, assim como em outros são diversas gargalhadas, pois ela transforma o caos em algo natural. As palavras com marcas de coloquialidade, frases curtas e diretas tudo gerou um livro extremamente importante que desperta emoções que até hoje não foram nomeadas.

    “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. ” (Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, 1960, p. 37)

    Ela fala de temas como a fome: e a caracteriza como amarela, o preconceito racial, a pobreza, os vícios em álcool e drogas, a educação, a política, entre outros. Ela usa o nome “Quarto de despejo” que é uma metáfora referente ao lugar onde mora, que abriga pessoas despejadas em uma situação precária, em várias passagens do livro a autora aponta sobre o cheiro de lixo do lugar, o convívio com a sujeira, quando o rio sobe e alaga a favela, os animais nojentos que transitam por lá e as doenças das crianças como vermes e lombrigas.

    Ela também expõe o preconceito entre os próprios favelados: há um momento em que uma criança a chama de preta fedida e a mãe não a repreendeu, ela mostra que mesmo na favela onde todos vivem em uma mesma condição e deveriam se apoiar essa união fraterna não existe.

    A obra estourou, vendeu mais de 10 mil exemplares na semana de lançamento, além de ser comercializada em mais de 46 países e traduzida em cerca de 16 idiomas. Foi a primeira obra sobre favela escrita por alguém que vivia a situação cotidianamente, e esses escritos geraram inúmeras discussões.

    Após o sucesso a autora se mudou para Santana, um bairro de classe média de SP, mas não foi bem aceita no local, afinal as pessoas não aceitam que uma favelada tenha vencido na vida. Mas pensando em sua carreira, em 1961 publica o livro Casa de Alvenaria, dois anos depois, em 1963, publica os livros Pedaços de Fome e o livro Provérbios, além de lançar um disco de vinil de canções de sua autoria. Sai de Santana em 1969 e compra um sítio em Parelheiros, nesse período ela alcança a ascensão social; passa a dar entrevistas, assinar seus livros, seu nome é sempre abordado por artistas como Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz e Clarice Lispector.

    Mas a fama chega ao fim, ela havia estourado num momento de curiosidade das pessoas, mas depois de um tempo foi deixada de lado e esquecida pelo mercado. Assim, teve que voltar a catar papel para se sustentar até 1977.

    Carolina Maria de Jesus faleceu em 13 de fevereiro de 1977, com 63 anos, em decorrência de uma insuficiência respiratória causada pela asma. Mas não morreu para a literatura: os seus feitos brilhantes ressurgem e outras seis obras póstumas foram publicadas: Diário de Bitita (1977) Um Brasil para Brasileiros (1982) Meu Estranho Diário (1996) Antologia Pessoal (1996) Onde Estaes Felicidade (2014) Meu Sonho é Escrever: contos inéditos e outros escritos (2018)

    Diversas biografias surgiram, mas nenhum dos autores conversou efetivamente com pessoas que Carolina conhecia, para saber mais detalhes e infelizmente elas não estão completas, por isso Vera Lúcia afirma que vai lançar em breve uma que conte a história da “Cinderela preta” integralmente.

    Carolina Maria é negra, favelada, mulher, mãe solteira com muito orgulho, como faz questão de lembrar em seus manuscritos. Ela pediu para não ser esquecida e não será, hoje Carolina aparece frequentemente em análise de linguagem nos livros de português e nos vestibulares como fonte particular de estudo. Enquanto uma mulher preta que pretendia mudar o mundo hoje ele se curva diante de tanta sabedoria e mais - de tanto viver em quartos de despejo Carolina Maria de Jesus nos presenteou com uma luxuosa mansão de conhecimento.

    “Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade. ”

    Curiosidade: Vera Lucia cedeu a Companhia das Letras um acervo de 27 obras inéditas, inclusive algumas partes importantes e cortadas do famoso “Quarto de Despejo”, a continuação da “Casa de Alvenaria”, “Diário do Sítio”, e um diário das viagens dela- um total de 4 viagens. Então logo poderemos ter acesso a um pouco mais de Carolina.

Bárbara Lopes


Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Vida sofrida, como de tantas outras Carolinas desse Brasil! Mas não desistiu!

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  3. Parabéns Bárbara Lopes.
    Gostei muito do seu texto, excelente conteúdo.
    Hoje são tantas Carolinas de Jesus "do Brasil", que nos deixaram esse legado de sabedoria, com uma cultura impar. Entretanto viveram "e / ou ainda vivem" como estrangeiras em sua própria Pátria.
    `A Carolinas de Jesus minha gratidão e reverencia.

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    1. Que bom que gostou fico feliz. Tem ração tem muitas Carolinas atualmente, ainda bem. Admiração total por essa mulher.🥰

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